“Atualmente, divido o meu dia entre ler, escrever e práticas físicas de que preciso para estar bem. Elas são simbióticas, não há uma polaridade, não existe corpo e mente: é tudo a mesma coisa, é um estado de integração”, diz em entrevista ao SAPO. Aos 41 anos, Joana Bértholo é conhecida pelos seus romances, contos e por escrever para peças de teatro e dança. Em 2023 ganha o Prémio Literário Fundação Eça de Queiroz, com o romance ficcional A História de Roma. Contudo, poucos sabem que, até aos 19 anos, foi atleta de alta competição nesse desporto “irrazoável de existir” (foi assim que pensou, quando lho deram a conhecer) que é o triatlo, após uma passagem sem sucesso (diz ela) pela natação.

Para o ensaio que agora publicou, através da Fundação Manuel dos Santos, O Meu Treinador e Outras Vivências do Desporto de Alto Rendimento, a autora percorre na primeira pessoa, com entrevistas e investigação pelo meio, memórias de um passado que se revelou mais sinuoso do que pensava. “No livro começo por fazer um elogio ao que foram anos muito bons da minha vida. […] No entanto, e a certa altura, dei por mim a elencar imensos lados sombrios do desporto de alto rendimento.”

As histórias que a Joana Bértholo nos conta nesta entrevista:

  1. Uma cultura de competição que marca a vida pessoal. “Era muito difícil desistir das coisas”
  2. Jovens de 13 ou 15 anos que já estão na alta competição. “Qual é a alternativa?”
  3. Joana Bértholo faz o retrato dos quatro treinadores que teve. Um disse-lhe: “nadador não pensa, nadador nada”
  4. O dia em que o pai confrontou um treinador. “Uma miúda não consegue perceber quando é que uma massagem está a ‘guinar’ ou não”
  5. “Quando me descreveram o triatlo… achei irrazoável existir um desporto assim”
  6. Anorexia, bulimia e distúrbios com a autoimagem são a ponta do icebergue. Treinos intensos desde muito jovem “são um peso muito grande para o organismo”
  7. Casos como o da Vanessa Fernandes sucedem-se, mas “ainda impera uma cultura de silêncio”
  8. Calma, existe o lado positivo de praticar, “muito a sério”, um desporto numa idade formativa: “ficou a autoconfiança” e o sentir que a veia artística só funciona em simbiose com práticas físicas
Joana Bértholo
Desportista e artista. Duas das facetas de Joana Bértholo. "Não há uma polaridade, não existe corpo e mente: é tudo a mesma coisa." Créditos: Matilde Fieschi

Em Portugal, especialmente no desporto, parece existir muito pudor em deitar cá para fora este tipo de memórias sem uma grossa camada de verniz por cima. Foi um problema passar de um registo de ficção para um de autobiografia?

Quando se faz um texto assumidamente autobiográfico e se diz ao leitor “isto foi o que me aconteceu e vou-te contar a minha verdade”, essa liberdade [que existe num romance ficcional] desaparece e surgem uma série de problemas éticos e literários, mas sobretudo humanos. A maioria das pessoas que eu cito estão vivas, vão ler o livro e não têm direito ao contraditório, porque a única voz que impera no livro é a minha. Eu percebi que isso levantava problemas terríveis para mim a nível de escrita, a ponto de quase ter desistido várias vezes. Era um texto que andava na minha gaveta há muitos anos.

Há muitas publicações sobre desporto de alta competição da autoria de portugueses, mas é de uma extrema raridade encontrar algo como aquilo que escreveu. De onde veio esta vontade?

Claro que há publicações e até estudos, mas são, sobretudo, muito técnicos, direcionados aos profissionais da área. Eu tinha vontade de explicar a uma pessoa comum o que é a experiência e a vivência de um atleta de alta competição em Portugal. A experiência que eu tenho vem da década de 90, pelo que tive de fazer um trabalho acessório de perceber o que mudou e falar com pessoas que estão dentro deste mundo.

Em entrevistas e biografias de atletas, lê-se muito expressões como “ser competitivo”, “superação”, “resiliência”, “autodisciplina” e “sacrifício”. É uma lista de mantras que se associou ao sucesso na alta-competição. Entretanto, este léxico invadiu os espaços da vida pessoal e laboral e esta visão pode ter o seu reverso e apontar uma pessoa como sendo “fraca” ou “preguiçosa”. Acha que podemos fazer esta leitura?

Depende de caso para caso. É difícil generalizar, mas claramente há competências que associamos à prática desportiva, como o perfecionismo, o foco em objetivos, a capacidade de trabalho, uma certa endurance. No meu caso, vejo claramente que isso ficou na minha personalidade. Todavia, e admito, não sei se isso já não existia em mim, porque aqui o problema é que não conseguimos fazer um estudo comparativo: não há uma Joana, num mundo paralelo, que nunca fez desporto de competição, para que depois possamos equiparar.

É possível que já tivesse essas características, dai que me sentisse “tão em casa” na prática competitiva. Mas não há dúvidas de que sinto que as coisas não desportivas que eu faço na vida, e que fiz ao longo da vida, foram muito marcadas por formas de pensar e de fazer que eu adquiri ao treinar.

Uma das premissas deste ensaio é o de falar de alguns medos que tive em relação a “competências negativas”: e estas duas palavras coloco-as entre muitas aspas porque é debatível até que ponto o ser-se competitivo pode tornar-se negativo. Eu lembro-me de ter medo de ser demasiado competitiva fora do âmbito desportivo, quando já era adulta, pois estava como que no meu ADN o traçar objetivos, o ser melhor do que fui ontem, o “fazer mais rápido, mais alto, mais rápido” [tradução em português do lema, em latim, dos Jogos Olímpicos: Citius, Altius, Fortius].

Houve uma aprendizagem muito clara que eu tive de fazer. Eu venho de uma cultura de trabalho e de empenho, em parte porque não era naturalmente talentosa, e dentro das equipas de que fiz parte fui sempre mediana, pelo que para acompanhar os meus colegas ou para singrar eu tinha a sensação de que tinha de trabalhar muito mais que toda a gente.

Mais tarde na vida, senti que a minha personalidade era uma cultura baseada no esforço e no empenho. Era muito difícil desistir das coisas, porque achava que qualquer objetivo, desde que eu trabalhasse mais, estaria ao meu alcance.

No entanto, há coisas na vida que não são assim, que não são para nós. Há coisas que temos de aceitar que não funcionam e isso nada tem que ver com o ser mais ou menos forte. Demorei um pouco a perceber que não se tem de ganhar em todas as frentes. Creio que este tipo de mentalidade vem de uma ideia de treino, assente na autossuperação.

Atualmente, temos adolescentes a serem preparados para competir em alta competição com métodos de treino que, por vezes, ignoram a sua saúde mental – o caso da triatleta Vanessa Fernandes, por ser mais mediático, serve de paradigma. Não lhe parece que se estão a criar “fábricas de atletas”, com o único propósito de obter resultados?

Não acho que haja uma resposta unívoca. Parece-me que dentro do universo português já há muitas pessoas e iniciativas que privilegiam toda a pirâmide: ou seja, não estão só preocupados com o topo ou os resultados. Já há psicólogos nas equipas, existe o Observatório Nacional de Violência contra os/as Atletas, passaram a existir lugares de denúncia. Também se vê uma cultura, com os pais e as pessoas em volta destes jovens, que ajudam a perceber que certos comportamentos e certas formas de motivar os miúdos já não fazem sentido. No entanto, é verdade que continuamos a conviver com o paradigma das “máquinas de fazer medalhas”.

Os atletas são extremamente especializados naquilo que fazem, mas isso não é assim tão diferente de um neurocirurgião de topo ou de qualquer profissão de topo, do qual esperamos um comportamento quase sobre-humano ou semidivino…

Contudo, aqui também está em causa a idade em que se começam a preparar os atletas. Isto não acontece em outras áreas de uma forma tão predominante.

Isso tem que ver com as nossas restrições biológicas, os corpos humanos têm picos de forma em diferentes idades e dependendo da modalidade desportiva que se pratica. Na natação os picos de forma ocorrem entre os 13 e os 16 anos, sendo que uma atleta mais duradoura pode esticar esse pico até aos 20 anos ou um bocadinho mais. Todos sabemos que a carreira de nadadora acaba cedo e tem de ser vivida o quanto antes, e isso, infelizmente, dá lugar a muitos abusos, porque estamos ali com ideia de que haverá, muito em breve, um declínio daquilo que o nosso corpo consegue fazer.

No caso das mulheres, com a puberdade e a mudança do seu corpo, isso está sempre muito presente na adolescência: o corpo muda e pode-se perder capacidade de performance.

Quando mudei para o triatlo foi um alívio, pois percebi que é um desporto de endurance, cujo pico de forma já corresponde a idades muito posteriores. As ginastas, para compararmos, são todas novíssimas, porque é naquelas idades que têm o corpo ideal, devido a coisas como a densidade óssea e a capacidade de elasticidade, pelo que têm picos de performance em idades muito jovens: daí que seja nestas idades que se tem de trabalhar para melhorar.

Qual é a alternativa? Interditamos certas competições para atletas com menos de “x” anos e só competem os outros, ficando de fora os que podem estar no seu pico?

Claro que, enquanto sociedade, podemos falar disso, sobre se é ou não aceitável, mas dadas a especificidades biológicas de cada desporto eu acho que é necessário que alguns tenham mesmo de passar por lidar com adolescentes e crianças.

O perfil dos quatro treinadores que a Joana Bértholo teve fazem lembrar o título de dois filmes de culto: “O Bom, o Mau e o Vilão” para os três primeiros, e “Léon, o Profissional” para o último que a treinou

Nos desportos individuais, com algumas exceções, fala-se muito dos atletas, mas quase nada sobre os treinadores. Os média pouco ou nada perguntam sobre as suas metodologias de treino ou o tipo de relação que têm com o atleta. Qual o motivo para isto suceder?

De facto, conhecemos mais treinadores dos desportos coletivos do que dos desportos individuais, e notamos que os primeiros têm uma espécie de função parental, como se estivessem a guiar uma família.

Nos desportos individuais eles são extremamente importantes. Estou agora a lembrar-me da britânica Emma Raducanu, uma das mais recentes miúdas prodígio do ténis. Ela fez aquela performance maravilhosa no US Open [que o venceu apenas com 18 anos e no 150.º lugar do ranking mundial do ténis], mas depois não conseguiu manter o nível. Creio que isso se deveu, sobretudo, a uma limitação psicológica, pois não soube lidar com a quantidade de pressão. Acompanhei o caso e o que se falava sobre ela estava relacionado com o facto de estar sempre a mudar de treinador [em dois anos teve cinco diferentes].

Contudo, há coisas que não sabemos sobre os atletas. Por exemplo, não sabemos quem são os massagistas, os nutricionistas ou os psicólogos que os acompanham. Hoje em dia, e no que se refere à parte psicológica, já é notório entre quem tem mind coaches e os que não têm. Acredito que alguém com a fibra do Ronaldo deve ter tido um acompanhamento profissional deste tipo, mas nós não sabemos.

Quem está de fora gosta de acreditar na projeção de que os atletas são versões sobre-humanas de nós: a ideia de que se eles conseguem, então nós também conseguimos.

No seu ensaio faz o retrato de quatro treinadores muito díspares. O que é que os diferenciava e de que forma a marcaram?

Existem tantos tipos treinadores quanto treinadores disponíveis, porque estamos a falar de pessoas com as suas idiossincrasias, com sua inteligência emocional, com a sua própria capacidade de socializar, motivar e observar.

Eu fiz estes quatro retratos porque são aqueles que eu conheci. Se tivesse tido dez treinadores, certamente que teria feito dez retratos.

No caso do primeiro, a sua preocupação era com o nosso bem-estar emocional. Como é que estamos na escola e em casa? Como é que estamos entre nós? Eu faço menção ao fator do riso, porque éramos todos muito jovens naquela equipa. Estamos a falar de equipas entre os nove e os onze anos, e os treinos eram divertidos, tinham dinâmicas, os aquecimentos eram jogos. Havia um lado lúdico ao treinar que era muito importante. É um tipo de treinador com um certo tipo de sensibilidade, quase um treinador amigo com quem podemos contar.

Depois dá-se uma transição, com um novo treinador, para um paradigma quase oposto. Não é um treinador para o qual haja espaço para reflexões sobre a prática…

“Nadador não pensa, nadador nada”, refere no livro, sobre o que este treinador uma vez lhe disse…

Foi a frase que ouvi quando estava num momento de maior angústia, em que estava com dificuldades em pertencer à equipa e andava a pensar muito nisso. E o meu instinto natural foi pedir apoio e conselhos àquela figura ascendente, que me recusou porque não era do mesmo paradigma do outro treinador. Para ele, tínhamos de resolver sozinhos as nossas questões psicológicas, aparecer ao treino, treinar com o maior empenho possível e não dar muito espaço a esse tipo de problematizações.

Em seguida existe um terceiro treinador, o qual representa um abuso de poder e não tanto uma cultura de treino.

São figuras com um grande ascendente sobre os atletas, e depois os atletas querem, de uma forma quase desajustada, agradar ao seu treinador. É muito difícil dizer “não” a este tipo de treinador.

Isso aconteceu-lhe quando ainda era muito jovem. Estas dinâmicas podem ter efeitos na nossa formação de identidade?

Claro. A nossa identidade, o nosso bem-estar, a imagem que temos de nós próprios está também dependente desta relação. E os treinadores, obviamente, têm de ter formação para entender isso, para não causar danos nestas transferências de expetativas. Há aqui uma situação de desequilíbrio de poder, sobretudo porque há uma gritante diferença de idades, pois estamos a falar de um adulto e de uma criança. Além do mais, estamos a falar de um adulto com funções de responsabilidade sobre o comportamento e a performance de uma criança. Cria-se aqui, portanto, uma situação muito delicada em que sabemos que, de vez em quando, as coisas podem correr mal para um certo sentido…

Quanto a esse “correr mal”, já lá iremos. Para finalizar a lista, teve um quarto treinador, também ele diferente dos outros?

Este era um misto dos anteriores, mas neste caso é preciso ter em conta que eu já tinha uma idade maior. Era um treinador próximo dos atletas de modo suficiente, mas também profissionalmente exigente num nível suficiente: ele acompanhava as diferentes esferas das nossas vidas, mas a estrutura organizava-se em volta dos resultados desportivos. No meu caso, foi o treinador com quem tive melhores resultados. Contudo, aqui já estou a comparar treinadores de modalidades diferentes [este último era treinador de triatlo], pelo que podemos ter de relativizar as comparações.

Independentemente de ser de outra modalidade, foi aquele com quem sentiu que era melhor atleta. Significa que ele conseguiu perceber o que necessitava e, a partir daí, esboçar um plano de treino ajustado à sua personalidade?

Era uma cultura de treino em que se ouvia os atletas, para perceber como moldá-los. O treino individual tem este tipo de especificidades que, se calhar, o treino de equipa não tem tanto: é mais fácil incluir o próprio atleta naquilo que ele sente que precisa de fazer. No meu caso, por exemplo, precisava de sentir-me à vontade em cima da bicicleta, durante o triatlo, porque tinha essa desvantagem.  Ou seja, é um treino capaz de suprir necessidades específicas e permite fazer planos extremamente individualizados e especializados, consoante o que são as forças e fragilidades do corpo de cada atleta. Isto era muito típico deste quarto treinador: não tinha o mesmo esquema de treino para toda a gente. Isto sucedeu na década de 1990, era algo que estava à frente do seu tempo – de tal forma que acabou por ir treinar para o estrangeiro –, mas hoje este tipo de treino é banal.

“Para uma miúda sem experiência alguma e que tinha 13 ou 14 anos não é possível perceber quando é que uma massagem do treinador está a ‘guinar’ ou não: eu dou o meu caso porque acredito que isto aconteça muitas vezes”

As relações entre treinador e atleta, sobre o que o primeiro pode dizer e fazer em determinadas circunstâncias, depende muito da idade do segundo. Dois profissionais adultos conseguem negociar certos limites, mas quando se trata de adolescentes essa negociação é desigual. É aqui que certos limites podem ser ultrapassados por um mau treinador e, inclusive, levar a comportamentos reprováveis e até criminosos – estou a referir-me ao assédio sexual. Quando se é jovem existe noção de quando é que certas linhas vermelhas estão a ser ultrapassadas?

É típico de uma adolescente, e sabemos isso pelas histórias de abuso que se vão revelando, que a pessoa só percebe a posteriori, quando já é adulta, que devia ter dito “não” a certos comportamentos. Só que isso na altura não era possível. Eu dou este exemplo no ensaio:

Se o treinador, num estágio de preparação para a seleção nacional, diz que próxima massagem vai acontecer no quarto dele, a atleta não vai questionar. Ela não questiona!

O exemplo que dá, neste caso, aconteceu consigo. Consegue contar o que se passou e o que a levou a perceber que algo não estava correto?

Eu descrevo esse processo, o qual não foi fácil para mim, porque durante muito tempo a minha própria identidade rodou em torno daquilo que de bom o desporto foi para mim.

Eu não conseguia pôr em causa a narrativa sobre a qual faço assentar a minha personalidade de adulta. Não cabia nessa história a ideia de qualquer tipo de abuso de poder, por parte de um antigo treinador, numa massagem que ele me deu.

Isto é complexo, porque os atletas são massajados todos os dias e a todo o tempo. Para uma miúda sem experiência alguma e que tinha 13 ou 14 anos, não é possível perceber quando é que uma massagem está a “guinar” ou não. Eu dou o meu caso porque acredito que isto aconteça muitas vezes. Não podemos esperar que sejam os jovens atletas a traçar os limites. Numa situação como a que estou a descrever é quase impensável que a jovem vá dizer algo como: “eu acho isto estranho, eu acho que está aqui qualquer coisa de errado”.

No entanto, e por sorte, alguma intuição eu devo ter tido, porque fui falar com a minha irmã mais velha.

De acordo com o que relata, recorda-se bem do “rosto subitamente lívido” da sua irmã e de ela ter ido logo falar com os seus pais. Continua: “Esperei que me viessem ralhar. Mas não. Ouvi a porta da rua bater com violência e soube depois que o meu pai rumou à casa daquele terceiro treinador […] Era uma figura heroica do triatlo, talvez tenha sido essa aura de impunidade que levou o meu pai a ter aquela atitude tão fora do seu carácter […] e tratar o assunto à sua maneira.” O assunto foi resolvido dando-lhe um novo treinador, mas nada mais sucedeu. Recentemente, ao falar com uma amiga dos seus tempos de natação sobre o sucedido, ela disse-lhe: “Safaste-te. Tiveste sorte”.

Ela diz-me isso no sentido de que outras tiveram menos sorte que eu, e ela própria sente que teve menos sorte do que eu: foi assim que eu interpretei a frase dela. Entretanto, e juntando a isto à experiência de ser mulher com o movimento #MeToo a acontecer no mundo, damo-nos conta de que muitas mulheres têm histórias destas só que nunca as partilham.

As histórias das outras pessoas é que acabam por, como num sistema de espelhos, nos fazer refletir: “espera aí, aquilo que me aconteceu e que eu normalizei a vida toda não era nada normal, aquilo estava errado”. Este tipo de entendimento, na maioria dos casos, chega muito, mas muito tarde na nossa vida.

Uma das críticas que se ouve em relação ao #MeToo prende-se com as pessoas demorarem tanto tempo, por vezes décadas, a denunciar o que lhes aconteceu…

É não compreender a vivência psicológica de um episódio deste tipo.

"Não é saudável ser-se atleta de alta competição porque são sujeitos a uma enorme carga e a um enorme volume de treino, é um peso sobre o organismo muito grande: ocorre um desgaste rápido no corpo"

Nos Jogos Olímpicos a prova de triatlo é composta por 1,5 quilómetros de natação, 40 quilómetros de ciclismo e dez quilómetros de corrida. Mas no Campeonato Mundial Ironman, a competição de triatlo mais conhecida e que decorre todos os anos no Havai, já estamos a falar de 3,8 quilómetros, 179 quilómetros e 42,195 quilómetros, respetivamente. Não é para qualquer atleta.

Como é que passa da natação para o triatlo, um desporto quase hercúleo?

Nunca tinha ouvido falar do triatlo até ao dia em que me convidaram. Era nadadora e treinava ao lado da pista dos triatletas, mas estava na minha bolha. E quando fui convidada pelo treinador de triatlo do clube onde eu nadava, eu própria não sabia para o que estava a ser convidada: mas quando me descreveram a modalidade… eu achei irrazoável existir um desporto assim. Tenho de nadar, sair da água rapidamente e meter-me logo numa bicicleta, pedalar, sair de cima dela e começar logo a correr até chegar à meta.

Com a água ainda a escorrer do corpo quando o atleta está a tentar acomodar-se na bicicleta e inclusive quando está a pedalar…

Exato. É um desporto onde, ainda por cima, há todas essas problemáticas na transição. Achei tudo aquilo estranhíssimo. Mas, ao mesmo tempo, era apelativo e, lá está, eu gostava de desafios. Confesso que, quando fui convidada a sair da equipa de natação [após um processo de seleção do qual ficou excluída], poderia teria sido psicologicamente complicado não ter uma alternativa dentro do desporto de alta competição: daí que me tenha agarrado àquela oportunidade, quanto mais não fosse porque me permitia continuar a nadar, que era o que mais adorava. Acredito que não teria sido fácil, para mim, sair da alta competição, de um regime em que nadava muitas horas por dia, ou deixar de participar em provas, para depois só ir à piscina de vez em quando para fazer sozinha algumas braçadas. Com a idade que na altura tinha, se a minha transição fosse para esta alternativa teria sido muito duro para mim. Achei ótimo, portanto, ter surgido o triatlo e, assim, poder continuar a competir. A única questão ali é que tinha de aprender a andar de bicicleta [risos]… e o ciclismo sempre foi o meu handicap no triatlo.

No livro relembra uma fase da sua vida, quando ainda estava na natação, em que “tinha erigido uma fortaleza de rituais sólidos, mas inflexíveis, em torno do corpo, do sono, do treino, da leitura, das tarefas da escola, mas — sobretudo — da comida”. Isto acaba por ser uma porta de entrada para problemas ao nível do comportamento alimentar?

Sim, tem que ver com o lado negro de aperfeiçoar as nossas competências.

É muito lindo falarmos em perfecionismo, dizer que as pessoas querem sempre ser as melhores, que são muito objetivas, traçam resultados e fazem tudo para os atingir: e isto depois soa como se fosse um enriquecimento geral da personalidade. O problema é que se isto não for acompanhado com um crescimento emocional, com uma autoimagem saudável, então a força que sentimos, a nossa capacidade de entrega vira-se se contra nós.

Lembro-me da fase em que tudo o que me importava era perder um quilograma na balança, para tentar ganhar um centésimo de segundo na competição de cem metros livres.

Estamos a falar de hábitos que podem afetar muito negativamente a saúde, a vida pessoal e social. No caso das mulheres, a obsessão com o peso, especialmente quando se é jovem, é um drama que leva a sérias consequências. Como se resolve esta equação de procurar ter sucesso sem comprometer o sentimento de bem-estar em relação ao resto da nossa vida?

Vou dar uma opinião muito pessoal, porque para responder muito bem a essa questão seria preciso ter um fisiologista, um nutricionista e um especialista em ciência do desporto.

De acordo com a minha experiência – e o que vou dizer não é apenas por ter tido uma doença de comportamento alimentar, é mesmo por ver os outros atletas –, não é saudável ser-se atleta de alta competição, porque são sujeitos a uma enorme carga e a um enorme volume de treino. É um peso sobre o organismo muito grande.

Ocorre um desgaste rápido no corpo. Eu, por exemplo. tenho problemas nos joelhos e nos ombros. Creio que existe um excesso de treinos exigentes em idades em que o corpo ainda está se está a formar. O que estou a dizer nada tem que ver, obviamente, com a prática de desporto: está apenas relacionado com as cargas de treino muito grandes em idades jovens. Além disso, também é preciso ter em conta fatores como o género, como as expetativas sociais em relação ao género, porque existem motivos para as doenças do comportamento alimentar terem maior incidência entre as mulheres.

No entanto, e esta é uma situação muito desconsiderada, as doenças de comportamento alimentar também acorrem em rapazes. Existem distúrbios específicos dos homens, relacionados com a autoimagem, como é o caso da dismorfia muscular. É um problema que não está tão relacionado com a manutenção de um certo peso, mas antes com o desenvolvimento, acima do normal, de certos grupos musculares, ou de uma certa aparência que são típicas de modalidades como o culturismo ou o halterofilismo.

Mesmo o tipo de pressão sobre os atletas deve variar também conforme a modalidade ou escalões...

Em desportos que estão divididos por escalões de peso, a questão da balança deve ser uma fonte de angústia e uma constante ansiedade para um atleta.

No judo, uma das práticas que antecede a pesagem que é realizada para um torneio passa pela chamada “dieta da maçã”, em que a(o) atleta ingere uma ou duas maçãs e fica longas horas sem comer mais nada, ao ponto de na hora da pesagem se sentir uma fome voraz.

Fazem-se dietas inimagináveis para se conseguir competir na categoria mais vantajosa. Muito seguramente, não deve ser bom para o corpo esse tipo de excessos, tampouco para a saúde em geral. É o reverso da medalha.

“Casos como o da Vanessa Fernandes ainda se reproduzem, acontecem por todo o lado, as federações, os clubes e os colegas sabem: ainda impera uma cultura de silêncio”

O treinador Lino Barruncho, quando foi entrevistado por si, afirmou que o desporto não profissionalizado é “mais saudável” do que os percursos no alto rendimento. Palavras dele: “Lidei com casos preocupantes. Nem estou a falar de atletas que tentaram e não conseguiram, estou a falar de atletas que tentaram, conseguiram, tiveram sucesso, mas... é complicado. Ficam marcas complicadas para a vida toda.” Casos como o da Vanessa Fernandes (que o Lino Barruncho conhece bem, porque a acompanhou enquanto amigo e treinador numa tentativa de lhe “curar” as feridas do passado) continuam a suceder?

Os testemunhos que fui recolhendo, tanto do Lino Barruncho como da Cláudia Pinheiro, que representa o Observatório Nacional da Violência Contra Atletas, confirmam que a esse nível não mudou muita coisa, apesar de se sentir que a sociedade civil está mais recetiva para falar de questões relacionadas com a saúde mental, que era uma coisa que não se falava de todo nos anos 90: já percebemos o peso que a depressão, o sentimento de insegurança e a ansiedade tem sobre a nossa vida pessoal, quanto mais sobre a performance dos atletas.

Ainda assim, o desígnio maior continua a ser a obtenção de resultados, ainda se sacrificam os atletas em prol das medalhas.

No caso da Vanessa, por exemplo, quase todos acreditavam que estava garantida uma medalha nos Jogos Olímpicos de Pequim, e a história dela foi infeliz até ao máximo. O caso dela é sempre muito citado porque é paradigmático, pois estão lá quase todo os erros e armadilhas.

Dois anos antes de participar nos Jogos, o próprio treinador da Vanessa Fernandes sabia que ela tinha problemas, que sofria de depressão e bulimia. No entanto, este nada fez, a crer no que a antiga atleta dá a entender, e o “deixar andar” da situação só piorou a sua condição mental, ao ponto de ter chegado a pensar que se cruzasse a meta com uma medalha e morresse logo a seguir… seria um alívio para o seu sofrimento. Como é possível chegar-se a este ponto?

Não consigo falar do que lhe sucedeu de uma forma imparcial, porque meto-me no lugar dela e faz-me imensa confusão que não a tenham protegido. Mas há uma coisa muito importante no que o Lino disse e que reproduzi no ensaio, que é quando ele diz que casos como este ainda se reproduzem, acontecem por todo o lado, as federações, os clubes e os colegas sabem: ainda impera uma cultura de silêncio.

No livro, começo por fazer um elogio ao que foram anos muito bons da minha vida, quis trazer esse lado panegírico e do olimpismo, do desporto enquanto forma de habitar gloriosamente os nossos corpos. No entanto, e a certa altura, dei por mim a elencar imensos lados sombrios do desporto de alto rendimento e trouxe ao de cima estas questões mais “bicudas”. Existe, de facto, uma necessidade de debatermos isto, e o meu texto pretende ser um ponto de partida para uma série de conversas que urgem ter lugar, para que se fale do que se faz ao nível dos clubes e das federações, para que percebamos as centenas de diferentes culturas de treino que existem no país, e para que haja espaço para os e as atletas puderem falar, denunciar, manifestar os seus sentimentos de insegurança e pedir ajuda. Estes espaços de debate, não minha opinião, ainda não existem.

"Fazer um desporto muito a sério, numa idade formativa, fica aqui dentro para sempre, fica essa experiência: a força, a disciplina, a organização mental… dito de forma mais simples, aquela ideia de que 'somos capazes'"

Neste momento é conhecida pelos romances e contos que publicou, além de escrever para dança e teatro. Como é que a Joana deu o salto do mundo do desporto de alto rendimento para o mundo das artes?

Na verdade, nunca houve essa cisão. Apesar de eu sempre ter treinado muito intensamente, ao longo da minha adolescência, eu consegui – de uma forma que hoje não entendo como foi sequer possível – conciliar os treinos com a escola.

Se calhar consegui porque era muito organizada, tentava não perder minutos… Eu era igualmente muito intensa na escola, gostava imenso de ler. Adorava aquilo. Já sabia que queria ser artista, só não sabia que expressão artística ia escolher.

Mas a fase em que eu tive melhores resultados no triatlo coincidiu com o período em que estava a frequentar a Escola Artística António Arroio. Tive a sorte de ter professores que percebiam que eu não negligenciava os estudos, e que, ao mesmo tempo, o desporto era muito importante para mim, pelo que foram muito flexíveis. As coisas correram bem, e à medida que crescia muito enquanto atleta, também crescia muito enquanto aluna e aspirante a artista.

Quando entro na Faculdade de Belas Artes e tive de decidir entre aquilo ou continuar no triatlo, não me lembro de sentir um dilema ou de ter andado angustiada.

De alguma forma, ficou claro para mim que, ao entrar na faculdade, ia desistir da via competitiva. Nos primeiros anos desisti de treinar e entreguei-me à vida das Belas Artes, à boémia… Mais tarde acabei por perceber que o desporto e o treino me eram essenciais para um certo equilíbrio, pelo que voltei a recuperar algumas práticas de treino, mas com zero de competição, sem treinador, apenas eu a dar uma corridinha e ir à piscina com alguma regularidade.

Atualmente, divido o meu dia entre ler, escrever e práticas físicas de que preciso para estar bem. Elas são simbióticas, não há uma polaridade, não existe corpo e mente: é tudo a mesma coisa.

É um estado de integração que eu falo no final do livro, e a que o psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi deu o nome de “fluxo”, em que corpo, mente, desporto e escrita coexistem num estado sem divisórias. Ele estudou atletas de alta competição no seu estado de transe, no seu estado de melhor performance…

Aquilo a que os desportistas e os artistas chamam de “estar na zona”, um estado mental de total absorção, concentração e motivação, em que as preocupações mundanas do dia a dia são ignoradas por completo…

Exatamente. No fundo, a premissa dele é a de que aquilo nos realiza e nos traz felicidade são as chamadas atividades autotélicas, aquelas em que não há uma distinção entre corpo e mente. Eu acho que a minha vida tem sido, quase sempre, um percurso em redor da cisão e da integração destas dimensões: há momentos em que a coisa se equilibra e flui mais facilmente; e outros em que tenho muito trabalho e pouco tempo para ir treinar ou dançar, e eu sei que quando isto sucede há de imediato um peso negativo sobre o meu bem-estar.

Parte do seu passado como atleta transferiu-se, portanto, para a sua vida atual?

Ficou a autoconfiança, a ideia de que “se eu já consegui fazer coisas tão difíceis, então isto já está dentro de mim e eu posso voltar a conseguir”.

É também por isso que eu penso que fazer um desporto muito a sério, numa idade formativa, fica aqui dentro para sempre, fica essa experiência: a força, a disciplina, a organização mental… dito de forma mais simples, aquela ideia de que “somos capazes”.